Causando prejuízos de até R$ 193 bilhões, o mercado de produtos ilegais prejudica a arrecadação, alimenta o crime organizado e afasta investimentos do Brasil

Existe um sistema de comércio que se move nas sombras. Ele não faz propaganda, não anuncia seus produtos e ainda assim é um dos mais rentáveis do mundo. Trata-se do comércio ilegal de mercadorias, um fenômeno que remonta aos primórdios das transações mercantis e, com a expansão do comércio mundial, atingiu patamares assombrosos. Hoje, ele movimenta trilhões de dólares, prejudica nações e consumidores e não contribui em nada para o desenvolvimento dos países.

Um estudo de 2015, realizado pela consultoria Euromonitor, calculou que esse tipo de transação representa de 8% a 15% da economia mundial, ou mais de US$ 12 trilhões, o mesmo que o Produto Interno Bruto (PIB) da China, a segunda maior economia do mundo. Essa fortuna corre à margem dos interesses públicos e nacionais e alimenta crimes como lavagem de dinheiro, sonegação e corrupção.

Definido como a produção, importação, exportação, venda e compra de bens que não seguem as normas vigentes, o mercado ilegal também assola o Brasil. Um levantamento realizado pelo Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) mostrou que, em 2018, o país registrou perdas de R$ 193 bilhões com o comércio irregular.

Segundo Edson Vismona, presidente do FNCP, essa cifra pode estar subestimada, uma vez que ela considera os prejuízos que a pirataria acarreta para apenas 13 setores da indústria e para os impostos que deixam de ser recolhidos. “Mesmo levando em conta esses dados, temos que ter em mente que, em 2018, as despesas executadas pelo governo na área da educação somaram R$ 121 bilhões e na de saúde, R$ 117 bilhões”, compara.

Cálculos do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) mostram que, com o valor das perdas registradas no ano passado com o mercado ilegal, seria possível investir na construção de: 1.520 hospitais, 30 mil Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), 96 mil creches, dois milhões de casas populares, 7,7 mil quilômetros de rodovias duplicadas, 6.655 escolas padrão CEU, 413 terminais aeroportuários e 128 terminais portuários.

Apesar de representar perdas enormes e despertar a atenção das autoridades, o gráfico do rombo aponta sempre para o alto. Em sua primeira medição, em 2014, foi registrado um prejuízo de R$ 100 bilhões. De lá para cá, os valores subiram a uma média de 15% ao ano. A exceção foi o intervalo entre 2017 e 2018, quando foi observado um salto de 24% – de R$ 146 bilhões para os atuais R$ 193 bilhões.

Para Vismona, o crescimento das perdas dos setores produtivos e da sonegação tem a ver com a crise econômica que o país atravessa, mas existem outras causas para essa evolução. “A situação de desemprego e baixo crescimento tem que ser levada em conta, mas o problema tem origem em pelo menos quatro fatores: alta rentabilidade do comércio ilegal, impunidade dos criminosos, preço dos produtos e aspecto cultural”, explica.

Se é mesmo assim, o Brasil é campo fértil para a proliferação desse ilícito.

Fator Imposto

O fenômeno do mercado ilegal tem sempre uma motivação econômica. Ele segue a regra universal, segundo a qual o lucro é o grande atrativo para o investimento. No caso das mercadorias contrabandeadas, a diferença do preço dos produtos é fator determinante para o lucro. Como a formação do preço é feita com base no custo de produção, que inclui investimento em tecnologia, mão de obra e, principalmente, impostos, os produtos dentro da legalidade não têm como competir com os ilegais.

Nesse sentido, já é consenso que o combate ao contrabando e à pirataria deve ir além de repressão policial e passar necessariamente pela revisão do sistema tributário brasileiro. O cigarro é o melhor exemplo. A maior parte dos cigarros contrabandeados que entram no Brasil é produzida no Paraguai. Nosso vizinho tem uma tributação de 16%, enquanto aqui o fabricante paga 80%. O resultado é que cerca de 48% do mercado brasileiro de cigarros pertence aos produtos paraguaios. Não é para menos: um maço produzido em território nacional tem preço mínimo de R$ 5, enquanto seu concorrente contrabandeado chega ao país custando R$ 2.

“É evidente que a alta dos tributos tem impacto no lucro dos criminosos do comércio ilegal. Quanto maior for a carga tributária, maior será o incentivo ao comércio de produtos contrabandeados e falsificados”, diz Vismona, lembrando que é o lojista que mais sente esse efeito. “Em um país em que a carga tributária incide mais sobre o consumo que no lucro e renda, é o lojista que fica no sacrifício”, afirma.

A repressão e o crime

O enfrentamento das práticas de falsificação de produtos e contrabando é tema caro a parlamentares, Ministério da Justiça e Receita Federal, tanto que a cada ano o número de apreensões de produtos ilegais aumenta – e aumenta muito. Segundo o balanço aduaneiro da Receita Federal de 2018, a apreensão de mercadorias nos portos, aeroportos e pontos de fronteira saiu de um montante anual de aproximadamente R$ 1,27 bilhão em 2010 para R$ 3,15 bilhões no ano passado.

Apesar de as autoridades registrarem recordes nas apreensões, sabe-se que a quantidade de produtos que não são detidos pelas polícias é muito superior à que é apreendida. Falta de investimento nas áreas de segurança, fronteiras pouco vigiadas e a sofisticação dos bandidos são alguns dos motivos para o problema. 

No II Encontro Nacional de Combate à Pirataria e a Crimes Correlatos, realizado em junho, o secretário nacional do Consumidor, Luciano Timm, falou da importância de articular vários órgãos do estados para ter uma ação mais efetiva de combate ao crime. Para ele, além do empenho do Poder Executivo em proteger a propriedade intelectual e combater o contrabando, é necessário que os tribunais de justiça, as polícias e outros órgãos de fiscalização conheçam o tema a fundo e zelem pelo efetivo cumprimento das leis. “É preciso que a polícia consiga prevenir e o Judiciário, julgar com rapidez”.

A opinião bate com a de Vismona, para quem há uma dificuldade de articulação entre órgãos federais. “Seria necessário criarmos centros de operações integradas, os chamados fusion centers. O Brasil já vivenciou essa experiência com os Centros de Comando e Controle adotados durante a Copa do Mundo e Olimpíadas. Poderíamos usar essa expertise no controle de fronteiras”, diz, ao se referir às estruturas que reúnem, em um só local, todas as forças de segurança pública e de assessoramento jurídico.

Para ele, além da repressão, as penas para os crimes de comércio ilegal deveriam ser mais rigorosas. Pela lei, criminosos condenados por contrabando cumprem prisão de dois a cinco anos e por descaminho, de um a quatro anos. “É muito pouco!”, diz o presidente do FNCP. “O problema é que esses crimes são vistos como de menor importância quando comparados ao tráfico de drogas, que pode resultar em penas de até 15 anos”.

O ministro Sérgio Moro também já chamou atenção para essa visão distorcida que a sociedade tem do comércio ilegal. “Não podemos ignorar o papel que o crime organizado tem na linha de produção e comercialização dos produtos piratas”, disse à Agência Brasil na ocasião do II Encontro Nacional de Combate à Pirataria. “A visão de que um pequeno criminoso atua nesse ramo para ganhar sua vida é antiga e até pode acontecer na ponta, mas existe uma linha de produção e comercialização que envolve grandes criminosos”, ressaltou.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, participa de audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Moro fala com conhecimento de causa. Não é mais segredo que o dinheiro vindo de contrabando e falsificação financia, por exemplo, esquemas de corrupção. No início de julho, a Operação Lava-Jato verificou que empreiteiras como a Odebrecht captavam dinheiro vivo em áreas em que a atividade ilegal de comércio é tolerada. Malotes com maços de notas de alto valor saíam de pequenas lojas de comércio popular para pagar propinas polpudas a políticos, funcionários públicos e diretores de estatais.

O papel do consumidor

O problema é que essa visão sofisticada de crime passa despercebida pela população, que não associa uma inocente transação comercial realizada na calçada com as engrenagens violentas da corrupção e tráfico de drogas.

“Os consumidores precisam se conscientizar de que, ao comprar mercadorias contrabandeadas ou falsificadas, estão entregando dinheiro para facções e milícias que aumentam a violência nas cidades de todo o país”, afirma Vismona.

O deputado Efraim Filho (DEM-PB), líder da Frente Parlamentar Mista de Combate ao Contrabando e à Falsificação, concorda. “O contrabando é um crime, ao olhar do consumidor, inofensivo, mas é nocivo para o mercado formal, mina o emprego e gera evasão de divisas”, diz.

Essa talvez seja a questão que mais dificulta a ação das autoridades no combate ao comércio ilegal. O problema é que a aceitação social do comércio de produtos falsificados é disseminada e já se tornou um traço cultural do cidadão. Uma pesquisa realizada em 2016 pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro apontou que, a cada dez brasileiros, três têm o hábito de comprar produtos piratas.

A displicência do cidadão nessa luta prejudica, inclusive, a imagem do país no exterior. Segundo Vismona, países que poderiam investir no Brasil podem rever seus aportes quando se deparam com o cenário de descumprimento de regras básicas de comércio. “Um dos critérios para investimentos externos é o respeito à ética e às leis”, diz. “Precisamos nos perguntar, por meio de campanhas e ações, que tipo de país nós queremos”.

Vismona se refere a campanhas como a Despiratize, promovida pela Câmara de Dirigentes Lojistas de Joinville no ano passado. A ação questionava ao cidadão se “o preço do produto vale a vergonha” em utilizar uma mercadoria falsificada.

A iniciativa também foi abraçada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), que historicamente luta para fortalecer o comércio seguro, acabar com a concorrência desleal e encontrar soluções que levem o país para o caminho do desenvolvimento.

“Queremos usar a força e a capilaridade do Sistema CNDL nessa luta para evitar que o comércio legal continue sendo prejudicado. É preciso nos unir e combater essa prática, que resulta em concorrência desleal com aqueles que pagam impostos, geram empregos e movem a economia nacional”, afirma o presidente da CNDL, José César da Costa. “Para nossa entidade, a legalidade é o único caminho possível para o país desenvolver-se de forma sustentável”.

Luz no fim do túnel

Apesar das dificuldades, especialistas reconhecem que existem esforços que estão trazendo alguma esperança para o enfretamento do comércio ilegal. Um deles foi a disposição dos presidentes de Brasil e Paraguai de atuar fortemente nos crimes de fronteira. Em março, no encontro entre Jair Bolsonaro e Mario Abdo Benítez, ambos prometeram trabalhar conjuntamente para solucionar o problema. O laço faz todo sentido, uma vez que a fronteira do Brasil com o Paraguai é um verdadeiro corredor não só para comércio ilegal, mas também para o tráfico de drogas e armas.

Outro ponto relevante é o trabalho que a Frente Parlamentar Mista de Combate ao Contrabando e à Falsificação vem realizando. Ela foi relançada nesta legislatura com a missão de ampliar o debate sobre o comércio ilegal dentro do Parlamento. “O Congresso Nacional tem obrigação de lutar para mudar essa realidade, criando mecanismos eficientes de combate e controle à ilegalidade”, disse o deputado Efraim Filho em artigo recente.

“A frente tem sido muito atuante na tipificação dos crimes relacionados ao contrabando e à falsificação”, opina Vismona, citando a promulgação da Lei nº 13.804, aprovada em junho e que pune o transporte de cargas ilegais com a perda da habilitação e prisão de até cinco anos. “A lei é ótima. Atua na logística do transporte. Muitos caminhoneiros eram atraídos com a promessa de lucros fáceis e penas pouco severas”.

Outra boa iniciativa foi lançada no ano passado com o estudo “Mercado ilegal no Brasil: diagnóstico e soluções”, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e o ETCO. A pesquisa é um mapeamento das principais falhas estruturais e econômicas nas quais os crimes do comércio se sustentam e analisa as ferramentas já disponíveis no país para combatê-las. Com base no trabalho, foi elaborada uma lista com dez medidas prioritárias destinadas ao enfrentamento do problema. Entre elas, estão a destinação de recursos específicos para as autoridades, a definição das atribuições de cada órgão nessa ação e o fortalecimento das medidas punitivas do contrabando. O trabalho foi tão bem elaborado que a frente parlamentar prevê a criação de um projeto de lei baseado nelas.

Como se vê, apesar de a tarefa ser dificílima, as autoridades e boa parte das organizações civis estão atentas e dispostas a assumir suas responsabilidades. Basta cada um fazer sua parte, a começar pelo cidadão.

Fonte: http://revistavarejosa.com.br/comercio-bandido/

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